Armar, referendo e decisão
(*) Lédio Rosa de Andrade
Obrigados a votar, os eleitores devem decidir se vão referendar ou não a Lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003. Poucos sabem disto. Creio que o tema deve ser abordado em etapas: o problema da arma; a questão do referendo; e a decisão popular.
Primeiro, é de se indagar: por que há arma no mundo? Dois fatores destacam-se. Existe um forte desejo internalizado nos humanos pela violência e agressão. A bondade natural de nossa espécie é um mito. Nós gostamos de matar e ferir. A cultura é que segura este desejo. A arma foi inventada porque o corpo humano não possui armas naturais como garras, chifres, colmilhos, veneno e outras tantas. Com elas, completamos nosso corpo para o exercício eficaz da violência. Arma não proporciona paz, mas embate e guerra: individual, de grupos ou de Estados.
Em uma perspectiva ideal, quiçá um dia a cultura universal crie condições de proibir a fabricação de qualquer arma, permitindo que os conflitos sejam decididos corpo a corpo, ou fala a fala. Até lá, arma significa violência, mesmo em legítima defesa.
O referendo não proibirá a fabricação de armas. Elas continuarão a existir, com restrição de comércio. O problema não será extirpado. Então, para que mobilizar toda a população brasileira, efetuando uma votação nacional, com alto custo? Vejo, novamente, duas respostas. Trata-se, inicialmente, da função simbólica do Direito e da Política. Todo governo necessita convencer que funciona. Portanto, envolver toda a sociedade civil em um referendo cria a imagem de funcionamento eficaz da administração pública. Ademais, desvia-se a atenção da população de seus mais cruciais problemas ou dá-se a ela uma compreensão falsa deles.
Pensemos na identificação da violência brasileira às armas e não às desigualdades sociais, provocadas pelo perverso sistema econômico que temos. Ou, na criação de falsas certezas, como: a) pensar que as armas privadas irão compensar a ineficiência da polícia; b) identificar arma com defesa e não com agressão; c) pensar que, para os mais fortes, esta lei irá modificar alguma coisa; d) acreditar que não há tragédias maiores, como as provindas da fome, da falta de proteção no trabalho, das péssimas condições das estradas, todas por incompetência do Estado; e) que é a arma que puxa violência; e f) pensar que nos tirarão direitos no futuro, como se, há décadas, o parlamento não estivesse retirando direitos sociais, previdenciários, econômicos e trabalhistas, especialmente das classes trabalhadoras, com muitos poucos gritando: "E depois, que direito vão nos tirar?"
Com isto, vê-se que o referendo não trata de uma decisão popular sobre como, de fato, será nossa vida, mas, sim, de um cenário criado para mostrar o funcionamento de nossa democracia, mesmo não estando ela a funcionar em setores cruciais, como, haverei de repetir sempre, nas questões sociais, econômicas e todas outras que dizem respeito às bases da sociedade: sua indústria, seu comércio e sua agricultura.
Poderíamos fazer um referendo ou plebiscito, por exemplo, para decidir a questão dos juros, dos empréstimos internacionais, das leis trabalhistas, do acúmulo do capital, da remessa de lucros ao exterior, da concentração da propriedade privada, da distribuição de renda, das privatizações e tantas outras questões importantes para a nação. Mas estes temas, e muitos outros, estão vetados à decisão popular.
Votar sim, votar não, nada alterará a vida concreta dos brasileiros. Volta-me à mente Lampedusa, em sua obra O Leopardo: "Se queremos que tudo fique como está é preciso que tudo mude
(*) Lédio Rosa de Andrade é juiz de direito em Tubarão (SC).
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