:::Fantoches nunca mais::: "Alea jacta est!"

Política,sociedade e cultura.Para resumir em três tópicos seriam estes os temas pelos quais queremos sempre gerar uma polêmica ou expor nossos pensamentos.Todavia, no blog também há espaço para as coisas do coração,da alma e da vida que enxergamos de maneira peculiar e reagimos de maneira muito mais ímpar ainda.Aqui está aberto o espaço para nossas idiossincrasias.Boa leitura

domingo, outubro 23, 2005

Armar, referendo e decisão

(*) Lédio Rosa de Andrade

Obrigados a votar, os eleitores devem decidir se vão referendar ou não a Lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003. Poucos sabem disto. Creio que o tema deve ser abordado em etapas: o problema da arma; a questão do referendo; e a decisão popular.
Primeiro, é de se indagar: por que há arma no mundo? Dois fatores destacam-se. Existe um forte desejo internalizado nos humanos pela violência e agressão. A bondade natural de nossa espécie é um mito. Nós gostamos de matar e ferir. A cultura é que segura este desejo. A arma foi inventada porque o corpo humano não possui armas naturais como garras, chifres, colmilhos, veneno e outras tantas. Com elas, completamos nosso corpo para o exercício eficaz da violência. Arma não proporciona paz, mas embate e guerra: individual, de grupos ou de Estados.
Em uma perspectiva ideal, quiçá um dia a cultura universal crie condições de proibir a fabricação de qualquer arma, permitindo que os conflitos sejam decididos corpo a corpo, ou fala a fala. Até lá, arma significa violência, mesmo em legítima defesa.
O referendo não proibirá a fabricação de armas. Elas continuarão a existir, com restrição de comércio. O problema não será extirpado. Então, para que mobilizar toda a população brasileira, efetuando uma votação nacional, com alto custo? Vejo, novamente, duas respostas. Trata-se, inicialmente, da função simbólica do Direito e da Política. Todo governo necessita convencer que funciona. Portanto, envolver toda a sociedade civil em um referendo cria a imagem de funcionamento eficaz da administração pública. Ademais, desvia-se a atenção da população de seus mais cruciais problemas ou dá-se a ela uma compreensão falsa deles.
Pensemos na identificação da violência brasileira às armas e não às desigualdades sociais, provocadas pelo perverso sistema econômico que temos. Ou, na criação de falsas certezas, como: a) pensar que as armas privadas irão compensar a ineficiência da polícia; b) identificar arma com defesa e não com agressão; c) pensar que, para os mais fortes, esta lei irá modificar alguma coisa; d) acreditar que não há tragédias maiores, como as provindas da fome, da falta de proteção no trabalho, das péssimas condições das estradas, todas por incompetência do Estado; e) que é a arma que puxa violência; e f) pensar que nos tirarão direitos no futuro, como se, há décadas, o parlamento não estivesse retirando direitos sociais, previdenciários, econômicos e trabalhistas, especialmente das classes trabalhadoras, com muitos poucos gritando: "E depois, que direito vão nos tirar?"
Com isto, vê-se que o referendo não trata de uma decisão popular sobre como, de fato, será nossa vida, mas, sim, de um cenário criado para mostrar o funcionamento de nossa democracia, mesmo não estando ela a funcionar em setores cruciais, como, haverei de repetir sempre, nas questões sociais, econômicas e todas outras que dizem respeito às bases da sociedade: sua indústria, seu comércio e sua agricultura.
Poderíamos fazer um referendo ou plebiscito, por exemplo, para decidir a questão dos juros, dos empréstimos internacionais, das leis trabalhistas, do acúmulo do capital, da remessa de lucros ao exterior, da concentração da propriedade privada, da distribuição de renda, das privatizações e tantas outras questões importantes para a nação. Mas estes temas, e muitos outros, estão vetados à decisão popular.
Votar sim, votar não, nada alterará a vida concreta dos brasileiros. Volta-me à mente Lampedusa, em sua obra O Leopardo: "Se queremos que tudo fique como está é preciso que tudo mude
(*) Lédio Rosa de Andrade é juiz de direito em Tubarão (SC).