:::Fantoches nunca mais::: "Alea jacta est!"

Política,sociedade e cultura.Para resumir em três tópicos seriam estes os temas pelos quais queremos sempre gerar uma polêmica ou expor nossos pensamentos.Todavia, no blog também há espaço para as coisas do coração,da alma e da vida que enxergamos de maneira peculiar e reagimos de maneira muito mais ímpar ainda.Aqui está aberto o espaço para nossas idiossincrasias.Boa leitura

sábado, setembro 10, 2005

A morte atrás da esquina


(*) Diorindo Lopes Júnior

Naquele Natal, uma loja instalou a primeira escada rolante da cidade e teve até festa, com direito a banda e fogos. Não era muito grande, mas era a primeira.
Meu primo Jorge veio passar uns dias em casa e levei-o para conhecer a novidade. Como eu, na primeira vez, encantou-se e subiu e desceu umas quinze vezes.
Compramos duas casquinhas de sorvete e ele quis andar uma outra vez. Fiquei mais atrás. Ainda estava subindo e ele já descia. Quando passamos um pelo outro, fui lamber meu sorvete e ele empurrou minha mão. Minha cara lambuzou-se toda.
As pessoas que desciam atrás dele caíram na gargalhada, as que subiam atrás de mim também e ele, já lá embaixo, se contorcia de tanto rir.
Iniciei a descida sem qualquer intenção de lhe arrancar o fígado a dentadas. Apenas dar um nó em suas orelhas de abano, por trás da nuca. Um nó cego, mas tão cego, que só um bisturi poderia desatar.
Ele percebeu e danou-se a correr. Como já contei várias vezes, os pés do lerdo do meu primo Jorge pareciam ganhar asas quando ele se metia em confusão.
Entretanto, não tinha muita resistência e até alcançar minha casa para se proteger na barra da saia de minha mãe, teria de enfrentar quatro quarteirões de subida. Já estava cansado no final do primeiro. Se o sinal fechasse, eu o pegaria sem nem precisar correr.
E o sinal fechou. Mas meu primo Jorge me surpreendeu virando a esquina. Ouvi o barulho da freada, um barulho surdo de batida, um berro de mulher e outros gritos. Continuei correndo.
Teria o lerdo de meu primo Jorge sido atropelado?
Não, não foi. Ao também dobrar a esquina, trombei com ele. Estava paralisado, pálido, aparvalhado, besta. Suas orelhas de abano estavam murchas e sem cor. A menos de dois metros de seus pés, jazia um corpo inerte e um pouco ensangüentado de homem.
A partir daí, tudo ficou bastante confuso. A motorista atropelante berrava no meio da rua que não tinha culpa, outras pessoas gritavam entre si, alguém mandou alguém telefonar para a polícia e outro para a ambulância, um sujeito abaixou-se, segurou o pulso do homem e sentenciou para trazerem folhas de jornais.
O morto estava sem um de seus sapatos.
Meus joelhos começaram a bater entre si, uma alma piedosa trouxe velas, adultos se aproximaram e nos afastaram da cena, minhas pernas bambearam e o pão com manteiga comido no café da manhã desentendeu-se no meu estômago com a casquinha de sorvete que meu primo Jorge não me deixou saborear por inteiro e ambos vieram acertar suas diferenças na via pública.
Pensei que também fosse morrer e precisei me escorar num poste para não beijar a lona.
Recuperado, puxei meu primo Jorge pelo braço e atravessamos a rua. Daria o nó cego em suas orelhas de abano um outro dia.
Só para não perder o hábito, seu calção estava molhado e pingava pela parte da frente.

(*) Diorindo Lopes Júnior (www.diorindo.jor.br) é jornalista e autor, entre outros, de O Sol em Capricórnio (www.atualeditora.com.br).