A morte atrás da esquina
(*) Diorindo Lopes Júnior
Naquele Natal, uma loja instalou a primeira escada rolante da cidade e teve até festa, com direito a banda e fogos. Não era muito grande, mas era a primeira.
Meu primo Jorge veio passar uns dias em casa e levei-o para conhecer a novidade. Como eu, na primeira vez, encantou-se e subiu e desceu umas quinze vezes.
Compramos duas casquinhas de sorvete e ele quis andar uma outra vez. Fiquei mais atrás. Ainda estava subindo e ele já descia. Quando passamos um pelo outro, fui lamber meu sorvete e ele empurrou minha mão. Minha cara lambuzou-se toda.
As pessoas que desciam atrás dele caíram na gargalhada, as que subiam atrás de mim também e ele, já lá embaixo, se contorcia de tanto rir.
Iniciei a descida sem qualquer intenção de lhe arrancar o fígado a dentadas. Apenas dar um nó em suas orelhas de abano, por trás da nuca. Um nó cego, mas tão cego, que só um bisturi poderia desatar.
Ele percebeu e danou-se a correr. Como já contei várias vezes, os pés do lerdo do meu primo Jorge pareciam ganhar asas quando ele se metia em confusão.
Entretanto, não tinha muita resistência e até alcançar minha casa para se proteger na barra da saia de minha mãe, teria de enfrentar quatro quarteirões de subida. Já estava cansado no final do primeiro. Se o sinal fechasse, eu o pegaria sem nem precisar correr.
E o sinal fechou. Mas meu primo Jorge me surpreendeu virando a esquina. Ouvi o barulho da freada, um barulho surdo de batida, um berro de mulher e outros gritos. Continuei correndo.
Teria o lerdo de meu primo Jorge sido atropelado?
Não, não foi. Ao também dobrar a esquina, trombei com ele. Estava paralisado, pálido, aparvalhado, besta. Suas orelhas de abano estavam murchas e sem cor. A menos de dois metros de seus pés, jazia um corpo inerte e um pouco ensangüentado de homem.
A partir daí, tudo ficou bastante confuso. A motorista atropelante berrava no meio da rua que não tinha culpa, outras pessoas gritavam entre si, alguém mandou alguém telefonar para a polícia e outro para a ambulância, um sujeito abaixou-se, segurou o pulso do homem e sentenciou para trazerem folhas de jornais.
O morto estava sem um de seus sapatos.
Meus joelhos começaram a bater entre si, uma alma piedosa trouxe velas, adultos se aproximaram e nos afastaram da cena, minhas pernas bambearam e o pão com manteiga comido no café da manhã desentendeu-se no meu estômago com a casquinha de sorvete que meu primo Jorge não me deixou saborear por inteiro e ambos vieram acertar suas diferenças na via pública.
Pensei que também fosse morrer e precisei me escorar num poste para não beijar a lona.
Recuperado, puxei meu primo Jorge pelo braço e atravessamos a rua. Daria o nó cego em suas orelhas de abano um outro dia.
Só para não perder o hábito, seu calção estava molhado e pingava pela parte da frente.
(*) Diorindo Lopes Júnior (www.diorindo.jor.br) é jornalista e autor, entre outros, de O Sol em Capricórnio (www.atualeditora.com.br).
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