:::Fantoches nunca mais::: "Alea jacta est!"

Política,sociedade e cultura.Para resumir em três tópicos seriam estes os temas pelos quais queremos sempre gerar uma polêmica ou expor nossos pensamentos.Todavia, no blog também há espaço para as coisas do coração,da alma e da vida que enxergamos de maneira peculiar e reagimos de maneira muito mais ímpar ainda.Aqui está aberto o espaço para nossas idiossincrasias.Boa leitura

sábado, janeiro 15, 2005

Lei e justiça



(*) João Baptista Herkenhoff



Eram tempos de juventude. Eu começava minhas atividades no Ministério Público. Estava servindo como promotor substituto em Cachoeiro de Itapemirim (ES), minha cidade natal.

Uma funcionária pública requer à Justiça a alteração de seu prenome. Tinha sido registrada como Sara. Mas na adolescência, ou por uma questão estética, ou porque lera algum livro no qual a heroína tinha o nome de Sarah, com h no final, resolveu alterar também seu prenome.

Aproveitando-se do rebuliço de um período pré-eleitoral, fez-se eleitora como Sarah. E dali em diante, deixou de lado sua certidão de nascimento e passou a usar o título de eleitor como seu documento padrão. Assim, com o prenome de Sarah se casou, ingressou no serviço público e desejava agora aposentar-se.

No processo de aposentadoria, um zeloso servidor, com olhos cuidadosos, percebeu o erro. Como aposentar Sarah, se Sarah não existia no mundo da lei? O nome da pessoa é o nome que consta do Registro Civil.

Só havia um caminho para resolver a embaraçosa situação: obter a retificação do registro. Com o beneplácito da Justiça, tudo ficaria nos conformes.

Sarah pleiteia então o “acerto” do seu prenome. Na forma da lei, o juiz determina que se ouça o Ministério Público.

Lavro então, como promotor, meu parecer. A requerente estava pretendendo a adulteração de seu prenome. De acordo com o vocabulário ortográfico da Academia Brasileira de Letras, Sara grafa-se sem o “h” final. Assim, uma pessoa registrada corretamente como “Sara” não pode pretender a corrupção ortográfica de seu prenome para chamar-se “Sarah”. O que a lei admitia era o contrário, ou seja, o prenome grafado erroneamente podia ser corrigido.

Foi um longo parecer, tão longo e tão fundamentado que veio a integrar um dos primeiros livros que publiquei: “Na Tribuna do Ministério Público”.

Hoje não daria o mesmo parecer. Aprovado em primeiro lugar no concurso para promotor, eu supunha que soubesse Direito. Mas eu me prendi à interpretação literal da norma jurídica. Há possibilidades hermenêuticas para apreciar de forma diferente a matéria, principalmente com o uso da interpretação teleológica. Esse tipo de interpretação ensina que a finalidade do preceito em exame é impedir que através da mudança irresponsável do nome civil as pessoas se valham do expediente para objetivos excusos. Não está seguramente abrangida pela proibição legal a pretensão da Sarah, minha conterrânea, que queria apenas corrigir, na maturidade, um arroubo poético de sua adolescência e que agora lhe trazia prejuízo.

Na verdade, com a vivência que os anos proporcionam, eu daria a Sarah até mais de um “h” no seu prenome, se isso fosse útil a sua vida. Que a confissão deste erro seja um conselho aos jovens estudantes e profissionais do Direito. A lei é apenas um caminho, no labor do jurista. O destino final, sem dúvida, é a Justiça. A lei nunca pode trair a Justiça.
(*) João Baptista Herkenhoff é livre docente da Universidade Federal do Espírito Santo, juiz de direito aposentado, PHD em filosofia do direito pela Universidade de Rouen (França) e em sociologia do direito pela universidade de Wiscousin (EUA). e-mail: jbherkenhoff@uol.com.br