Entrevista com José Saramago
ÉPOCA - A morte tornou-se tabu nos dias de hoje?
Saramago - Sim. Hoje as pessoas querem evitar o assunto e esconder as mortes que acontecem a sua volta. É como se o mundo fosse um hotel onde os mortos costumam desaparecer na calada da noite, sem que nenhum ä hóspede possa notar sua presença. Embora os filmes e a televisão abordem a morte, não tocam no ponto fundamental da finitude. As mortes são falsas, os mocinhos levam tiros e voltam a viver. É outra forma de tratar a morte como irreal. No passado, ela era vista com maior drama. Talvez as pessoas exagerassem, mas sabiam conviver com a tragédia.
ÉPOCA - O senhor faz no livro uma descrição apocalíptica do planeta, com seus recursos naturais esgotados. O mundo está condenado à destruição?
Saramago - O planeta está sofrendo um saque de seus recursos materiais. Como não temos outra despensa do que a própria Terra, essa exploração tende a esgotar nossas reservas naturais. O homem se encarrega de destruir a si próprio. E veja o caso da Amazônia, com uma seca assombrosa e a devastação das árvores. Essa floresta é essencial para a saúde da humanidade, é o pulmão do mundo, e já perdeu 17% de todo o seu território. Daqui a pouco, caso o governo não tome medidas efetivas, a Amazônia deixará simplesmente de existir. E esse é um assunto do Brasil, de ninguém mais. O Brasil tem uma responsabilidade mundial nesse caso.
Saramago - Prefiro não falar nisso, vamos esperar para ver no que dá. Mas é brutal. O desgaste que o governo Lula sofreu é muito forte. Depois de tantas esperanças, não imaginávamos que escândalos de corrupção tomassem o governo Lula, que representava uma luz nova para um mundo cada vez mais mergulhado em interesses mesquinhos. Ele não poderia ter admitido a corrupção, e não consegue mais combatê-la. Vamos aguardar as investigações.
ÉPOCA - O senhor acha que Lula ajudou a projetar o Brasil?
Saramago - No começo, sim. Mas, na situação atual, Lula está amarrado: sua liberdade de ação é limitada. Ora, esse fato é muito sério para o Brasil, que tem um regime presidencialista. Lula está de pés e mãos atados e parece que não vai mais conseguir fazer as grandes medidas que prometeu no plano social. Foi uma decepção para o mundo.
ÉPOCA - Na nova ordem mundial, e não apenas no Brasil, a esquerda está vivendo uma crise ética. O senhor ainda crê nela?
Saramago - A esquerda atravessa um deserto e não consegue chegar a um oásis. Ela tem se fragmentado por toda parte. Em países como a Argentina, os partidos de esquerda perderam toda a representatividade no Congresso. Em Portugal, apóio a candidatura de Mário Soares (do Partido Socialista Português). Pode ser que não seja um milagre, um novo Sebastião, mas pode fazer alguma coisa pelo país, a reboque dos interesses do capital econômico.
ÉPOCA - O senhor continua a professar o comunismo?
Saramago - Claro! Acredito que a única maneira de resolver os problemas da humanidade está na distribuição de renda e na igualdade entre as pessoas. Curiosamente, hoje você pode dizer que seu vizinho é comunista ou eu posso afirmar que sou um comunista. Mas ninguém se declara capitalista. Capitalistas são eles lá, os chefes das grandes corporações, os donos do dinheiro.
ÉPOCA - O senhor acha que o mundo hoje se reduz a um império mundial liderado pelos Estados Unidos?
Saramago - Agora vivemos o império do petróleo e do dinheiro - o resto é disfarce. Até mesmo George W. Bush está submetido aos desígnios do Grande Capital. Ele governa para as grandes corporações. O capitalismo neoliberal não passa do governo dos grandes conglomerados econômicos.
ÉPOCA - As guerras assimétricas atuais, empreendidas pelos Estados Unidos, revelam um choque de civilizações entre Ocidente e Oriente?
Saramago - Depende. A Arábia Saudita, aliada dos EUA e maior produtora de petróleo, possui um regime fundamentalista. Foi o petróleo que moveu a invasão do Iraque. Existe, sim, um conflito religioso entre o cristianismo e o Islã, que só seria resolvido com um acordo comum entre os dois blocos. Afinal, se Deus existe, ele é só um. Para que brigar?
ÉPOCA - Bento XVI teria algum papel nesse pacto?
Saramago - Não acho que ele terá qualquer atuação no sentido conciliatório. Mesmo João Paulo II não estava preparado para isso, nem interessado.
ÉPOCA - Por que no romance Ensaio sobre a Lucidez o senhor critica o regime democrático?
Saramago - Porque o fato é um só: a democracia funciona apenas no plano institucional, na organização e derrubada de governos pelo voto. Na prática, quem manda são organismos como a Organização Mundial do Comércio e o FMI, que não são eleitos democraticamente, são instituições imperiais. Na falsa democracia mundial, o cidadão está à deriva, sem a oportunidade de intervir politicamente e mudar o mundo. Atualmente somos seres impotentes diante de instituições democráticas das quais não conseguimos nem chegar perto.
ÉPOCA - Pelo jeito, o senhor continua sendo pessimista.
Saramago - Não sou pessimista. O mundo é que é péssimo. Como podemos ser otimistas diante de um planeta onde as pessoas vivem tão mal, a natureza está sendo destruída e o império dominante é o do dinheiro?
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